Especialista avalia rodas de conversa com 577 adolescentes do PICERN e aponta estratégias para políticas municipais

As rodas de diálogo ocorreram virtualmente e contaram com ampla adesão de adolescentes

No mês de janeiro de 2022, a APDMCE promoveu nove rodas de conversa envolvendo 577 adolescentes dos NUCAs de 168 municípios do Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte. Esses eventos virtuais, bem como outras iniciativas do Selo UNICEF relacionadas à saúde mental, foram ministrados pela professora de Psicologia Alessandra Xavier. Foram debatidos temas como saúde mental, sexualidade, promoção de bem-estar psicológico e proteção de experiências adversas e fatores de risco.

Alessandra Xavier tem especialização em Psicoterapia Psicanalítica, mestrado em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutorado em Psicologia Clínica pela Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha. É professora fundadora do curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções sobre a Saúde da Criança e da Adolescência (Nusca). A pesquisadora, que participa de uma série de iniciativas relacionadas à saúde mental e à prevenção de suicídios, conversou com o Selo UNICEF e avaliou o trabalho realizado até aqui. Ela também projeta o que esperar das ações desenvolvidas pelos municípios nos próximos anos.

Leia a entrevista completa com a professora Alessandra Xavier, que está publicada no último relatório do Selo UNICEF no PICERN:

Muitas vezes há o pensamento equivocado de que a saúde mental deve ser tratada apenas no âmbito dos equipamentos de saúde. Qual a importância de envolver atores das diversas áreas nessa rede de suporte a crianças e adolescentes?

Especialmente ele é equivocado quando a gente tem uma definição de saúde que envolve uma perspectiva de integralidade, de universalidade, que é um direito constitucional e dá base à existência do SUS. Então não tem como a gente pensar na saúde de um ponto de vista integral sem considerar que faz parte da saúde ter acesso a todas as dimensões da vida que garantam a possibilidade de saúde: moradia, renda, educação, proteção (...). As situações de violência, segundo a Organização Mundial de Saúde, são as que causam mais agravos à saúde mental. A gente observa o índice elevado de crianças e adolescentes submetidos à violência doméstica, de gênero, sexual, ao racismo estrutural; a gente precisa de ações integradas para dar conta desses aspectos.

Como é possível executar essas ações acima partindo do entendimento da realidade dos municípios, que, em um cenário geral, enfrentam problemas estruturais que perpassam a escassez de recursos e infraestrutura?

Essa dificuldade de articulação intersetorial tem diversas origens, uma delas é o campo da formação. Muitas vezes, a formação desses profissionais ocorre de forma fragmentada. A formação precisa contemplar um olhar múltiplo, complexo para se pensar aquele sujeito inserido no mundo em diferentes perspectivas. O outro desafio é o campo das políticas públicas. A gente tem leis maravilhosas no país, mas que não conseguem ser operacionalizadas por falta de vontade política ou porque muitas vezes ficam limitadas a uma política de governo por não haver o interesse em fazer esses investimentos que vão trazer mais qualidade de vida, autonomia e empoderamento para os cidadãos. E tem a falta de articulação entre municípios, estados e a federação. Se a sobrecarga dos trabalhos ficar somente nos municípios, sem uma retaguarda do estado e da federação, isso fica muito difícil. Outro elemento importante é o envolvimento da sociedade civil, dos coletivos, da comunidade como um todo nos seus processos de cuidado e de saúde.

Como avalia o impacto da pandemia à saúde mental de crianças e adolescentes? E que ações precisam ser feitas pelos diversos setores sociais para enfrentar essa questão?

A pandemia trouxe impactos severos e amplos, e ainda não temos nem condições de de avaliar os efeitos disso a longo prazo. Os desdobramentos disso implicam uma necessidade de implementar ações para trabalhar as questões relacionadas à saúde mental da população, principalmente na elaboração dos processos de luto e de perda. Essa pandemia revelou graves falhas no campo ético, da solidariedade, do fortalecimento dos vínculos, nos projetos coletivos, nas falhas da rede de atenção psicossocial, nas falhas dos sistemas de saúde, educação e assistência social. E a gente tem uma quantidade significativa de adolescentes que ficaram órfãos, que evadiram da escola… Então temos a evasão escolar, as dificuldades de aprendizagem, os lutos, as perdas, o aumento dos indicativos de depressão, de transtorno de ansiedade, o uso abusivo de álcool ou outras drogas, a fragilidade de vínculos familiares como questões extremamente importantes que precisam ser alvo das políticas públicas e de ações no âmbito da escola. A escola precisa ser repensada para dar conta dessas questões. E precisamos facilitar o acesso dos adolescentes às políticas de educação, saúde e assistência social.

Como avalia as rodas de conversas propiciadas pelo Selo UNICEF, no último ano, reunindo adolescentes para debaterem a saúde mental a partir de suas experiências pessoais? Qual a importância desses momentos de escuta?

Essas rodas de conversas são uma estratégia metodológica muito valiosa, tivemos rodas com mais de 250 adolescentes! A gente via a ausência de espaços para trabalhar aquilo que a OMS coloca como um dos elementos mais protetivos, que é, além da identificação precoce dos transtornos mentais e a efetiva oferta de ações terapêuticas, o desenvolvimento de habilidades, junto a esse adolescente, para lidar com a vida. Os adolescentes trazem questões como a dificuldade de dar conta das demandas escolares, as dúvidas profissionais, as questões relacionadas à sexualidade, aos relacionamentos interpessoais, que aparecem como questões muito difíceis e emblemáticas, e os conflitos familiares. Esses eixos apareceram com os adolescentes precisando discutir sobre a questão dos relacionamentos tóxicos, 

racismo estrutural, questões relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero, o preconceito vivenciado pela população LGBTQIA+, a falta de informação sobre os direitos e de conhecimento sobre os equipamentos de saúde, assistência social, a função da escola. A gente viu a necessidade de conversa, encontro, vínculo, diálogo.

Como pesquisadora da área de saúde mental, o que espera de iniciativas como o Selo UNICEF? Que realidade gostaria de encontrar nos municípios daqui a três anos?

Eu espero que os profissionais estejam preparados e atentos no desenvolvimento de projetos de forma intersetorial para dar conta de ações que envolvam a sociedade civil, os coletivos, os meios de comunicação, que envolvam os adolescentes para que eles tenham voz e sejam ouvidos nas suas demandas de cuidado e em seus projetos. E que os serviços estejam mais próximos dos adolescentes, mais disponíveis e, principalmente, preparados para oferecer estratégias diante dessas questões: da sexualidade, dos conflitos familiares, das situações de violência, das dificuldades em seus relacionamentos interpessoais, das dificuldades relacionadas às demandas oferecidas ou vivenciadas na escola, as dúvidas em relação à inserção no mercado de trabalho. As políticas públicas precisam de monitoramento e avaliação frequente. Então espero que daqui a três anos a gente tenha municípios desenvolvendo ações intersetoriais, inovadoras (...), que os adolescentes se sintam acolhidos e à vontade para acionarem os equipamentos de saúde, assistência e de educação, e que a gente tenha resultados impactantes em relação à saúde de forma geral, à saúde mental e à qualidade de vida de crianças e adolescentes.